Mais
além da corrupção
por
Silvio Caccia Bava
Vamos
começar pelo começo: a corrupção é inaceitável e deve ser combatida em todas as
suas formas; seus atores – passivos e ativos – precisam ser punidos. A
sociedade como um todo vê seus impostos serem desviados, dilapidados, mal
geridos. É preciso mais democracia e mais controle público e social para coibir
essas práticas, que são tradicionais na história brasileira.
A
corrupção assume as mais diversas formas e é como o cupim, penetra em todas as
instituições e as corrói por dentro, minando sua legitimidade, sua capacidade
de cumprir objetivos sociais e econômicos. Talvez possamos identificar que
essas práticas se generalizam no período autoritário, quando a coisa pública
era vista como propriedade dos governantes, mas seguramente ela é mais antiga −
remonta aos coronéis e às oligarquias descritas, por exemplo, por Jorge Amado.
É preciso reconhecer que ela está presente em todos os níveis de governo:
municipal, estadual e federal; no Executivo, no Legislativo e no Judiciário.
Ameaça constantemente a democracia, o bem-estar e a qualidade de vida da
população.
Isso
é verdade tanto para os banqueiros que sonegam impostos e as empresas que
trabalham com caixa dois ou dão propinas para ganhar uma licitação como para o
funcionário público que vende facilidades, o policial que extorque o
narcotráfico e lhe dá proteção, o juiz que vende uma sentença ou a ONG que
desvia recursos. A rigor, todos deveriam ser processados e, caso se verifique o
crime, cumprir a pena.
Por
que então há casos de corrupção que se destacam mais que outros? Por que o
mensalão ocupou tão intensamente os jornais durante o período da recente
campanha eleitoral, e as denúncias contidas no livro Privataria tucana, de
Amaury Ribeiro, não prosperaram? Por que a CPI do Cachoeira termina agora sem indiciar
ninguém apesar da fartura de provas? Por que ONGs e movimentos sociais são
criminalizados, como se fossem meros aparelhos criados para o desvio de
recursos? A essas perguntas, para não sermos ingênuos, temos de acrescentar
outra: quem são os atores dessas denúncias?
As
acusações de corrupção estão sendo usadas para atacar um campo político. O MST
já foi vítima desses ataques, as ONGs também, ainda que a própria CPI das ONGs
declare que a grande maioria das entidades sem fins lucrativos sejam honestas e
realizem importantes trabalhos sociais. No campo dos partidos políticos, o PT
está sob fogo cerrado. E quem são os acusadores? A linha de frente desses
ataques, se podemos dizer assim, é composta dos grandes jornais, sendo suas
“informações” depois repassadas, de forma mais simplificada, pelos telejornais.
De forma menos evidente, vemos o PSDB e outros partidos conservadores atuarem
nesse mesmo sentido e tomarem iniciativas (todas elas sempre legítimas) como a
constituição da CPI das ONGs, criada para apurar denúncias.
Vale
lembrar que o Greenpeace, quando subiu os rios da Amazônia com seu barco e
denunciou a ação das madeireiras clandestinas no desmatamento da região,
mereceu uma campanha orquestrada pelos empresários afetados, com direito a
outdoors e passeatas de seus funcionários em Belém, na qual defendiam a
Amazônia para os brasileiros e a expulsão da ingerência internacional na
região, expressa naquele momento por essa ONG.
Mais
do que o combate à corrupção, o grande objetivo desses setores conservadores
parece ser desqualificar e criminalizar seus opositores, criando uma imagem
pública do conjunto de entidades e movimentos sociais, assim como do PT, e
mesmo da pessoa de Lula, a partir de situações que poderiam muito bem ser
identificadas nos líderes mais destacados da oposição.
A
corrupção é um instrumento das elites que utiliza de seus recursos privados
para influenciar as políticas públicas em seu favor, permitindo também a
apropriação privada dos recursos públicos e a reafirmação e o aprofundamento
das desigualdades. Ela é constitutiva mesmo do nosso modelo precário de
democracia. Sem corrupção não há privilégio.
E
fica a pergunta: mas se no governo Lula nunca os banqueiros ganharam tanto; no
governo Dilma nunca as grandes empresas tiveram tamanho apoio, seja por meio
dos financiamentos do BNDES ou de políticas de isenção tributária; se nos
últimos anos os grandes meios de comunicação tiveram o maior volume de verbas
de propaganda do governo federal, então por que os principais meios de
comunicação e os principais partidos conservadores estão movendo essas
campanhas?
Em
uma análise do governo Lula, André Singer aponta a inclusão social e a entrada
em cena de novos atores políticos como a razão desses conflitos. Essas são
mudanças estruturais que desequilibram a balança do poder. Tomemos como exemplo
a população empobrecida do Nordeste, antes fiel aos coronéis da região, numa
relação de dependência que perpetuava o ciclo da desigualdade e da pobreza. Ela
passou a engrossar o apoio a Lula e às políticas de resgate da cidadania, o que
esse cientista político identifica como lulismo, um deslocamento que tende a se
consolidar nos próximos anos. Isso as elites não podem tolerar.
Enfrentar
a corrupção é também enfrentar o domínio da máquina pública pelas elites em
todos os níveis de governo, é combater o privilégio, é lutar pela transparência
e ter o controle social da máquina pública. Para fazer tudo isso é preciso
desmontar os atuais mecanismos que asseguram o poder para essas elites. Entra
na agenda a reforma política, a luta contra o monopólio dos meios de
comunicação. Mas uma reforma política com tal envergadura não passaria no nosso
Congresso...
Silvio
Caccia Bava
Diretor
e editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil