Carta Aberta à VUNESP, Professores e Vestibulandos
Partindo do
real papel do vestibular na sociedade brasileira, qual seja, selecionar
segundo critério meritocrático a entrada de estudantes nas
universidades do país, falar desse processo seletivo obrigatório
significa compreender que mesmo com a expansão da oferta de vagas
efetuada na última década (através do Reuni, Prouni, Fies, entre outros
Programas de acesso implementados nas universidades nos últimos anos,
sobre os quais cabem críticas relevantes, porém não é o que nos
pretendemos aqui no momento), ela ainda não é suficiente e, portanto, o
vestibular continua ranqueando estudantes e deixando um grande número
para o lado de fora dos muros das universidades públicas, ratificando a
desigualdade econômica, de acesso à educação pública de qualidade, aos
bens culturais e a meios de comunicação mais democráticos.
Nesse
contexto, as provas dos vestibulares geraram e continuam gerando
discussões na sociedade em geral a partir dos temas levantados nas
questões de cada ano, (re)colocando muitas vezes assuntos importantes na
ordem do dia, com base num conteúdo cientificamente embasado e
utilizando-se de autores expressivos da sociologia, filosofia, história,
geografia, literatura etc. para fazer com que os candidatos reflitam
sobre o que se espera que respondam.
Porém, tendo em vista o
último vestibular da Unesp -que coloca em cheque conceitos históricos
que refletem a história política, econômica e cultural brasileira- vimos
por meio desta carta, nos manifestar a respeito de algumas questões que
ferem gravemente a legitimidade do vestibular que oferece acesso a esta
Universidade, bem como seu estatuto científico, ambos frutos de
conquistas às quais sempre fomos instigados a respeitar e defender,
enquanto ex-alunos desta Instituição.
Na questão 7, a temática da
maternidade é apresentada de maneira absolutamente inapropriada para o
momento histórico presente em que se coloca a questão de gênero como
central nas análises sociais. Inexplicavelmente a Vunesp recupera uma
anacrônica leitura da questão de gênero, concebendo-a a partir de
parâmetros naturalizantes. Mesmo não encontrando qualquer evidência nos
processos reais, o vestibulando é obrigado a ratificar uma visão que
trata o tema como uma fatalidade biológica, se não mesmo como uma
obrigação social ou moral da mulher. Se a máxima lançada por Simone de
Beauvoir, há mais de sessenta anos ("Ninguém nasce mulher: torna-se
mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a fêmea
humana no seio da sociedade"), parece não incomodar a comissão
elaboradora da prova, nos causa estranheza que não se sintam
envergonhados por desrespeitar a obra daquela que foi provavelmente a
mais destacada professora da Universidade Estadual Paulista em toda a
sua história, Heleieth Saffioti, autora do clássico estudo "A mulher na
sociedade de classes: mito e realidade".
Ainda em relação a esta
questão, cabe frisar que não é o acesso -ou falta dele- à educação que
faz de um grupo social uma minoria política, mas sim a desigualdade
vivenciada na correlação de forças, na distribuição do poder existente
na sociedade. Desse modo, reduzir toda a luta feminina a um singelo
pedido por condescendência dos patrões em relação à 'vocação natural da
maternidade' nos soa inadmissível.
Na questão 59, existe a
tentativa não apenas de suavizar, mas sim de eximir as nações europeias
por qualquer responsabilidade sobre as consequências negativas
decorrentes do expúrio processo neocolonial que escravizou e explorou
diversos povos africanos bem como as riquezas presentes em seus
territórios, culpabilizando-os por sua atual situação de miséria, já que
segundo o texto da questão, já haviam ali conflitos instaurados, antes
da invasão das potências ocidentais. Nos sentimos como se a Unesp
estivesse simplesmente negando os ensinamentos de referências como
Florestan Fernandes (“A integração do negro na sociedade de classes” ou
"O negro no mundo dos brancos"), Octavio Ianni ("As metamorfoses do
escravo" ou "Cor e mobilidade social em Florianópolis" -em parceria com
Fernando Henrique Cardoso), o pluralismo inaugurado por Levi-Strauss
("Raça e história") e fundamentalmente o método crítico de autores como
Walter Benjamin ("Teses sobre a história") e Edward Palmer Thompson ("A
história vista de baixo").
O autor joga uma nuvem de fumaça sobre
a Conferência de Berlim (1884) e a partilha da África, com todas as
suas consequências, portanto é negacionista. Depois, espontaneamente,
faz uma alusão ao iluminismo (sem citar fontes), e nega os efeitos da
presença de oligopólios europeus no Continente. Ou seja, a análise do
texto não se sustenta nem como reles nota de roda pé de estudos
consagrados dentro da tradição crítica de interpretação dos processos
sociais. E é esta interpretação crítica que vem sendo valorizada em
todos os documentos referenciais para o tratamento de tais fenômenos no
campo das ciências humanas quando voltadas para o ensino fundamental e
médio, para não dizer da educação em geral. É conhecida de todos nós,
trabalhadoras e trabalhadores da educação, a resistência imposta pelas
universidades públicas de São Paulo em adotar medidas que favoreçam a
inclusão em seu meio de estudantes que fazem parte das minorias
políticas, mas nem a tão defendida 'autonomia universitária' lhes dá o
direito de fazer vista grossa para os Parâmetros Curriculares Nacionais
em suas avalições admissionais.
Na questão 56, chegamos à
conclusão de que o debate sobre o multiculturalismo e o relativismo
cultural deseja relativizar as construções sociais e políticas mais
profundas da Sociedade Brasileira e sugerir uma 'tolerância aos que
intoleram'. O problema da questão da Vunesp não é quem escreve e nem
quem é citado como referência, mas o que se escreve e a maneira como se
questiona: o lugar e os termos a partir do qual se decide formular um
problema e transformá-lo em questão para os vestibulandos.
Franz
Fanon, lembrando daquilo que certa vez um professor seu lhe disse,
afirmou: "sempre que você ouvir alguém maltratar um judeu, preste
atenção, porque ele está falando sobre você [um negro]". Quer dizer,
falar de diferença enquanto atraso e barbárie no Iraque pode ser também
um jeito de falar, por exemplo, de populações indígenas no Brasil, sobre
países ou populações africanas ou afro-brasileiras e por aí vai. Nossa
preocupação com a questão envolve a linguagem e o formato no qual esta
foi construída. Tal discurso, defensor do caráter hierárquico no trato
das tradições culturais, pode até encontrar amparo ou legitimidade
dentro daquela tradição denominada criticamente por Edward Said como
'orientalista', mas soa como 'palavra mofa' à luz da renovação crítica
que a área dos estudos culturais sofreu nas últimas décadas.
Defendemos uma educação plural, que valorize a diversidade inesgotável
no campo das ciências. O que não podemos fazer é nos calar diante de uma
proposta educativa que se negue a ser crítica!
Esperamos que
esta manifestação quebre o silêncio até agora existente a respeito do
problema aqui apontado. O corpo docente parece alienado deste debate,
não se incomodando com o fato do vestibular estar fazendo chacota aberta
das teses e ideias que eles mesmos nos ensinaram nesta instituição que
tem tão larga tradição de participação crítica no debate público
nacional. Os estudantes também não se manifestaram publicamente a
respeito da questão. Esperamos que o façam a partir de agora, e
utilizando os mais variados instrumentos e meios de pressão. Como
ex-alunos da Unesp, mas fundamentalmente como trabalhadoras e
trabalhadores da educação, nos recusamos a acreditar que auxiliar os
alunos a 'escovar a história a contrapelo' possa promover a seleção de
respostas erradas nas provas admissionais.
Neste sentido,
convidamos a todos que sintam-se representados por este documento que
assine embaixo e divulgue da melhor forma que julgar possível. Mais que
um texto nosso, é uma construção coletiva.
Fonte: https://www.facebook.com/pages/Carta-Aberta-%C3%A0-Vunesp-Professores-e-Vestibulandos/747193165360116?fref=nf
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