27.11.14

O Enem 2014, as críticas e a educação brasileira

Edilson Adão Cândido da Silva e Laercio Furquim Jr*

A prova de ciências humanas e suas tecnologias da edição do Enem 2014, realizada em 9 de novembro, teve um tom crítico e caracterizou-se pela alta qualidade. Foi pautada por um forte teor social e tocou em temas polêmicos, como se espera de uma prova de humanidades comprometida com a excelência acadêmica. Não foram poucos os educadores que se viram representados nela. No entanto, a partir de uma interpretação equivocada, ou mesmo desconhecendo as diretrizes básicas da normatização educacional brasileira, alguns poucos enxergaram na prova um tal “aparelhamento político”, muito nos parecendo uma transferência para o debate educacional do verdadeiro “fla-flu” em que se convertera os embates entre petistas e tucanos verificado no último pleito presidencial. O debate por esse caminho distorce o verdadeiro caráter avaliador que a prova fizera, ao nosso ver, de forma adequada.
Provavelmente, essa reação fora motivada pelos temas inquietantes em que a prova ousou abordar, como a situação das negras e dos negros na sociedade brasileira e a decorrente política de ação afirmativa; consumismo exacerbado e publicidade infantil, abordados pela filosofia e tema da redação; a (i)mobilidade urbana; desigualdade; direitos humanos e os 50 anos do golpe militar.
Esses críticos demostraram um certo “estarrecimento” perante o perfil da prova. Ora, o que é estarrecedor é alguém que se arvora educador protestar contra uma prova que toca nas feridas das mazelas sociais do país. Ignorar ou omitir a realidade social brasileira é que deve causar indignação. Reivindicar uma prova de humanidades que não se toque na temática da ação afirmativa, da cruel desigualdade brasileira, na responsabilidade da indústria automobilística em ter historicamente ao lado dos nossos dirigentes patrocinado o engessamento do tráfego nas metrópoles brasileiras, nas raízes históricas da política nacional, nas sequelas do regime militar é que deve causar estranheza.
Desde os anos 1990, quando teve início forte reformulação na educação brasileira com a segunda alteração da Lei de Diretrizes e Bases, criação das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (DCNEM), o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCNs), entre outras iniciativas, independentemente de governo tucano ou petista, o tom da educação e dos educadores é progressista. A retomada de um discurso mais conservador é fenômeno do momento presente na sociedade brasileira, em que se vê até uma parcela dela pedindo a volta do regime militar. Provavelmente, seja o Brasil caso único no mundo atual: manifestações contra o regime democrático e pedindo um retorno à ditadura. Obviamente que isso não pode ser levado a sério e, muito menos, o processo educativo deve se pautar por tal pequeneza. Igualmente óbvio é que podem coexistir no ambiente escolar professores conservadores e progressistas, mestres de esquerda e de direita, já que seria hipocrisia negar que professores tenham suas opções ideológicas, produto de suas formações, mas a ideologia não pode poluir o processo pedagógico. O ENEM não fez isso e acusá-lo de aparelhamento beira a leviandade.
Inspirado no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o exame foi criado em 1998 na gestão do ministro Paulo Renato, do PSDB, e, desde então, tornou-se um dos protagonistas da educação brasileira. Inicialmente, com o propósito de avaliar o desempenho do estudante em sua etapa conclusiva no ensino médio e balizador de políticas públicas, foi aprimorado  e convertido em ferramenta de acesso ao ensino superior a partir de 2009. Essa mudança levou o Enem a tornar-se um dos maiores exames seletivos do mundo e na última edição contou com mais de oito milhões de participantes. Ao nosso ver, precisa ser lapidado, melhorado, mas é um ganho a sua chegada como ferramenta de avaliação. A concentração dos exames numa única edição anual parece ser sua maior falha, pois a margem para riscos e falsas denúncias torna-se muito alta. Isso já deveria ter sido corrigido.
Contudo, há um projeto pedagógico por trás do exame, uma matriz curricular coerente e esse encaminhamento do Enem ajuda o professor no planejamento de suas aulas, assim como a preparação dos estudantes. As seis competências e trinta habilidades das humanidades têm sido corretamente cumpridas e nos parece que quem age de má fé na tentativa de desqualificar a prova, sequer sabe disso.
* Edilson Adão Cândido da Silva e Laercio Furquim Jr. são mestres em ciências pela USP e autores de Geografia em rede (editora FTD)

Fonte: Congresso em Foco

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