Jânio de Freitas tem um texto ótimo e com tamanha lucidez que chega a espantar. Às vezes penso que ele é meio bruxo, clarividente, tal a maneira como expõe as mazelas do país, respeitando sempre as regras do bom jornalismo e de maneira ética e sóbria, bem ao contrário do que nos habituamos a ler na mídia grande.
A coluna dele hoje está soberba, mais uma vez.
Aborda com uma clareza impressionante as dúvidas que nos assaltam quanto a essa horripilante história ocorrida na cidade maravilhosa, lugar onde criminosos e autoridades andam lado a lado, quando não de braços dados.
A incrível história do assassinato dos três jovens, com participação dos homens (?) do Exército é bastante estranha realmente.
Fiquem com o texto:
O campo dos mortos
Jânio de Freitas
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Relatos do assassinato dos três rapazes estão minados de contradições e limitações investigatórias
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O CONFLITO em frente ao antigo Ministério da Guerra, hoje Comando Militar do Leste, no Rio, entre manifestantes do Morro da Providência e uma tropa do Exército, foi um ato de violência descontrolada muito adequado ao descontrole de violência que o originou, tanto no assassinato de três rapazes por pessoal do Exército como no tratamento dado ao caso.
Os relatos mais aceitos e difundidos do envolvimento de um tenente, três sargentos e sete soldados do Exército no assassinato dos três rapazes estão minados por contradições e, como de hábito, pelas limitações investigatórias e noticiosas quando vitimada gente humilde ou envolvidos militares – quanto mais quando há os dois.
Às narrativas insatisfatórias de que os rapazes foram mortos por bandidos inimigos do seu morro, depois de entregues para a morte pelo tenente e seus chefiados, contrapõe-se pelo menos outra versão, não posta em exame. É a possibilidade, que conta com indícios para ser mais do que isso, de que os rapazes não fossem entregues a bandidos, nem mortos por bandidos, mas por responsabilidade direta de algum ou alguns do grupo de militares.
O Morro da Providência não é uma favela típica. No centro do Rio, em sua decadência na República tornou-se bairro de classe média baixa, muito habitado por operários qualificados, e só em parte popularizado à maneira de favela. Já a favela da Mineira corresponde bem à designação, inclusive quanto à violência. Não é admissível, por isso, que um veículo do Exército chegasse à vontade até sua entrada e, ali, os três rapazes fossem levados por soldados à recepção pacífica que lhes dava um grupo de bandidos. E, para completar, de tudo isso em área com intenso trânsito de pedestres, só restassem duas "testemunhas". Anônimas.
"Testemunhas" cujos relatos, no "Globo", não divergem. Nas palavras de um dos tais anônimos: "Achei que fosse o início de uma ocupação do Exército na favela e que os jovens também fossem militares, porque estavam muito bem vestidos, até então pareciam calmos". Bem vestidos depois de presos em quartel do Exército já seria difícil. Mas um deles, ao menos um, foi visto nesse quartel pela mãe. Em narrativa quase imediata e não contestada, ela o viu "caído no chão, ensangüentado". Pouco depois já estaria "bem vestido" e, também como os dois companheiros, "parecia calmo" ao ser entregue a bandidos inimigos do seu morro? Ah, que elegância e que autodomínio admiráveis.
Não está claro como se deu o achado dos corpos, no dia seguinte, e como a polícia os localizou. Estavam em lugar muito distante, uma região à margem do Rio em direção às cidades serranas e a Minas. Estavam nas cercanias de um "lixão" em Gramacho, onde "possivelmente foram deixados por um caminhão de lixo". Logo, os garis os recolheram e puseram no caminhão de coleta sem os notar, três corpos adultos. E nem os notaram, ao serem despejados, os catadores de salvados do lixo que ali dividem a sua miséria com urubus.
Gramacho tem presença intermitente no noticiário por uma peculiaridade: é um lugar de mortes por armas, porém sem autoria e sem confrontos. São granadas em que crianças pisam, são obuses que outros encontram no capinzal e tentam recolher. E morrem. Gramacho, imenso e belo descampado, é um nome que se fez conhecido como campo de treinamentos do Exército. Por lá apareceram os três rapazes assassinados.
A coluna dele hoje está soberba, mais uma vez.
Aborda com uma clareza impressionante as dúvidas que nos assaltam quanto a essa horripilante história ocorrida na cidade maravilhosa, lugar onde criminosos e autoridades andam lado a lado, quando não de braços dados.
A incrível história do assassinato dos três jovens, com participação dos homens (?) do Exército é bastante estranha realmente.
Fiquem com o texto:
O campo dos mortos
Jânio de Freitas
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Relatos do assassinato dos três rapazes estão minados de contradições e limitações investigatórias
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O CONFLITO em frente ao antigo Ministério da Guerra, hoje Comando Militar do Leste, no Rio, entre manifestantes do Morro da Providência e uma tropa do Exército, foi um ato de violência descontrolada muito adequado ao descontrole de violência que o originou, tanto no assassinato de três rapazes por pessoal do Exército como no tratamento dado ao caso.
Os relatos mais aceitos e difundidos do envolvimento de um tenente, três sargentos e sete soldados do Exército no assassinato dos três rapazes estão minados por contradições e, como de hábito, pelas limitações investigatórias e noticiosas quando vitimada gente humilde ou envolvidos militares – quanto mais quando há os dois.
Às narrativas insatisfatórias de que os rapazes foram mortos por bandidos inimigos do seu morro, depois de entregues para a morte pelo tenente e seus chefiados, contrapõe-se pelo menos outra versão, não posta em exame. É a possibilidade, que conta com indícios para ser mais do que isso, de que os rapazes não fossem entregues a bandidos, nem mortos por bandidos, mas por responsabilidade direta de algum ou alguns do grupo de militares.
O Morro da Providência não é uma favela típica. No centro do Rio, em sua decadência na República tornou-se bairro de classe média baixa, muito habitado por operários qualificados, e só em parte popularizado à maneira de favela. Já a favela da Mineira corresponde bem à designação, inclusive quanto à violência. Não é admissível, por isso, que um veículo do Exército chegasse à vontade até sua entrada e, ali, os três rapazes fossem levados por soldados à recepção pacífica que lhes dava um grupo de bandidos. E, para completar, de tudo isso em área com intenso trânsito de pedestres, só restassem duas "testemunhas". Anônimas.
"Testemunhas" cujos relatos, no "Globo", não divergem. Nas palavras de um dos tais anônimos: "Achei que fosse o início de uma ocupação do Exército na favela e que os jovens também fossem militares, porque estavam muito bem vestidos, até então pareciam calmos". Bem vestidos depois de presos em quartel do Exército já seria difícil. Mas um deles, ao menos um, foi visto nesse quartel pela mãe. Em narrativa quase imediata e não contestada, ela o viu "caído no chão, ensangüentado". Pouco depois já estaria "bem vestido" e, também como os dois companheiros, "parecia calmo" ao ser entregue a bandidos inimigos do seu morro? Ah, que elegância e que autodomínio admiráveis.
Não está claro como se deu o achado dos corpos, no dia seguinte, e como a polícia os localizou. Estavam em lugar muito distante, uma região à margem do Rio em direção às cidades serranas e a Minas. Estavam nas cercanias de um "lixão" em Gramacho, onde "possivelmente foram deixados por um caminhão de lixo". Logo, os garis os recolheram e puseram no caminhão de coleta sem os notar, três corpos adultos. E nem os notaram, ao serem despejados, os catadores de salvados do lixo que ali dividem a sua miséria com urubus.
Gramacho tem presença intermitente no noticiário por uma peculiaridade: é um lugar de mortes por armas, porém sem autoria e sem confrontos. São granadas em que crianças pisam, são obuses que outros encontram no capinzal e tentam recolher. E morrem. Gramacho, imenso e belo descampado, é um nome que se fez conhecido como campo de treinamentos do Exército. Por lá apareceram os três rapazes assassinados.
Fonte: Folha de S.Paulo - 17/06/08.
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