Francisco Menezes*
Neste mês de setembro, a celebração do centenário de Josué de Castro tem dois sentidos principais. O primeiro deles é o necessário resgate da memória desse grande brasileiro. O Brasil, e em particular sua juventude, precisa conhecer a história de vida e as idéias do ilustre médico pernambucano. O segundo sentido refere-se à fome, que Josué re-significou em sua obra, e que continua sendo um tema de discussão necessária no país.
Josué de Castro partiu da realidade que via e sentia – no sertão pernambucano, nas plantações de cana-de-açúcar da Zona da Mata, nos manguezais do Recife. Em sua atuação profissional como professor, médico, sociólogo e escritor, converteu seu profundo conhecimento daquela realidade em contribuição incomparável para a compreensão dos problemas da miséria e da fome.
A partir de sua obra e de sua militância política, tornou-se nome reconhecido internacionalmente, tendo na FAO liderado a primeira campanha internacional contra a fome.
“E foi assim que, pela história dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana. (...). E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, era um drama universal. (...). Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje a paisagem do nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome”.
Josué de Castro foi um homem à frente de seu tempo. Baseando-se na realidade imediata do pós-guerra, não se conformou com diagnósticos simplistas sobre as carências do acesso à alimentação em todo o mundo, ousando pensá-las em sua complexidade e nas múltiplas faces com que se apresentam. Afirmou ser a fome a expressão biológica de males sociológicos, produzidos por iniqüidades estabelecidas pelos próprios homens.
Desmitificou a fome como resultado inexorável de determinações naturais. Demonstrou que a fome não se reduz a um problema de produção insuficiente de alimentos: caso a população não disponha de poder de compra para adquirir os alimentos, haverá fome. Denunciou o imperialismo e o comércio internacional de reduzirem o tema da alimentação ao âmbito de interesses econômicos específicos, desprezando os interesses da própria saúde pública1.
Nunca se satisfez, em suas análises, com abordagens meramente setoriais dos problemas: “Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, com um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais”2. Inspirou a todos nós, que hoje trabalhamos o tema da soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, com a perspectiva intersetorial por ele iniciada.
Mas Josué de Castro incomodou. Isto lhe custou o exílio durante o regime militar e o impedimento de retornar ao país. Esse cidadão do mundo morreu de tristeza há 35 anos, por não poder regressar ao seu país, ao seu Recife, que traduzia para ele o significado das mazelas de todo o planeta, mas que também traduzia as possibilidades de superação, contidas em nosso próprio povo.
Josué nos ensina, profundamente, sobre os tempos atuais. Tempos de crise do sistema alimentar mundial. Usando os conhecimentos que ele nos legou, não pensemos que será apenas com a elevação da produção de alimentos que o mundo conseguirá enfrentar a presente elevação de seus preços.
Novamente precisamos saber articular os diferentes campos das políticas públicas a serviço dos interesses de todos e todas. Precisamos entender que o alimento, muito mais do que uma simples mercadoria é um direito fundamental e primeiro de todo ser humano. Não é nos mercados especulativos, nas bolsas de commodities, cujo objetivo único está na realização de grandes lucros para alguns, o lugar adequado para a definição de seu destino.
O Brasil tem alcançado nos últimos anos progressos que antes não eram imagináveis no enfrentamento da calamidade da fome, da miséria e da desigualdade. Isto nos faz referência para todo o mundo. É a primeira vez que o país alia crescimento econômico com redução da desigualdade. Pesquisas nacionais, com metodologias rigorosas, comprovam esses avanços, como é o caso da redução da desnutrição infantil. Porém, tais fatos não nos autorizam à conclusão de que o problema da fome está resolvido no país. Para certos porta-vozes das elites, que não querem abrir mão dos privilégios dos mais abastados, essa é a interpretação fácil que aponta como desperdício os investimentos atualmente realizados junto à população mais desprovida.
Como nos mostrou Josué de Castro, a fome não pode ser apenas avaliada por sua manifestação biológica, ou por medidas de peso e altura. A fome, na sua versão contemporânea, se esconde atrás de estratégias de busca do provimento de energia, mas absolutamente carente de outros componentes nutricionais indispensáveis para uma vida saudável. É a fome oculta que nos ensinou Josué. De fato, a fome em seu strictu sensu pode ser até aplacada pelo alimento colhido no lixo ou adquirido por ganho proveniente de trabalho degradante, mas na sua essência ela não estará vencida.
A fome será vencida pelo reconhecimento, efetivo, do direito humano à alimentação, acima de qualquer outra prioridade. Isto se faz e garante por meio de políticas públicas sob a responsabilidade de toda a sociedade, mas em particular do Estado.
Chico Science, poeta do mangue, que foi um dos ícones da atuais gerações, falou em uma de suas músicas: "... tem que saber p'ra onde corre o rio, tem que saber seguir o leito, tem que estar informado, tem que saber quem é Josué de Castro,...rapaz!". Josué de Castro, patrono do Consea, tem muito o que nos dizer nesse caminho.
*Diretor do Ibase
Publicado em 5/9/2008.
1 Prefácio da última edição de Geografia da Fome, Rio de Janeiro, 2003
2 Geografia da Fome, Rio de Janeiro, 2003
Fonte: Ibase – 5/9/08.
Neste mês de setembro, a celebração do centenário de Josué de Castro tem dois sentidos principais. O primeiro deles é o necessário resgate da memória desse grande brasileiro. O Brasil, e em particular sua juventude, precisa conhecer a história de vida e as idéias do ilustre médico pernambucano. O segundo sentido refere-se à fome, que Josué re-significou em sua obra, e que continua sendo um tema de discussão necessária no país.
Josué de Castro partiu da realidade que via e sentia – no sertão pernambucano, nas plantações de cana-de-açúcar da Zona da Mata, nos manguezais do Recife. Em sua atuação profissional como professor, médico, sociólogo e escritor, converteu seu profundo conhecimento daquela realidade em contribuição incomparável para a compreensão dos problemas da miséria e da fome.
A partir de sua obra e de sua militância política, tornou-se nome reconhecido internacionalmente, tendo na FAO liderado a primeira campanha internacional contra a fome.
“E foi assim que, pela história dos homens e pelo roteiro do rio, fiquei sabendo que a fome não era um produto exclusivo dos mangues. Que os mangues apenas atraíram os homens famintos do Nordeste: os da zona da seca e os da zona da cana. (...). E quando cresci e saí pelo mundo afora, vendo outras paisagens, me apercebi com nova surpresa que o que eu pensava ser um fenômeno local, era um drama universal. (...). Que aquela lama humana do Recife, que eu conhecera na infância, continua sujando até hoje a paisagem do nosso planeta como negros borrões de miséria: as negras manchas demográficas da geografia da fome”.
Josué de Castro foi um homem à frente de seu tempo. Baseando-se na realidade imediata do pós-guerra, não se conformou com diagnósticos simplistas sobre as carências do acesso à alimentação em todo o mundo, ousando pensá-las em sua complexidade e nas múltiplas faces com que se apresentam. Afirmou ser a fome a expressão biológica de males sociológicos, produzidos por iniqüidades estabelecidas pelos próprios homens.
Desmitificou a fome como resultado inexorável de determinações naturais. Demonstrou que a fome não se reduz a um problema de produção insuficiente de alimentos: caso a população não disponha de poder de compra para adquirir os alimentos, haverá fome. Denunciou o imperialismo e o comércio internacional de reduzirem o tema da alimentação ao âmbito de interesses econômicos específicos, desprezando os interesses da própria saúde pública1.
Nunca se satisfez, em suas análises, com abordagens meramente setoriais dos problemas: “Um dos grandes obstáculos ao planejamento de soluções adequadas ao problema da alimentação dos povos reside exatamente no pouco conhecimento que se tem do problema em conjunto, com um complexo de manifestações simultaneamente biológicas, econômicas e sociais”2. Inspirou a todos nós, que hoje trabalhamos o tema da soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil, com a perspectiva intersetorial por ele iniciada.
Mas Josué de Castro incomodou. Isto lhe custou o exílio durante o regime militar e o impedimento de retornar ao país. Esse cidadão do mundo morreu de tristeza há 35 anos, por não poder regressar ao seu país, ao seu Recife, que traduzia para ele o significado das mazelas de todo o planeta, mas que também traduzia as possibilidades de superação, contidas em nosso próprio povo.
Josué nos ensina, profundamente, sobre os tempos atuais. Tempos de crise do sistema alimentar mundial. Usando os conhecimentos que ele nos legou, não pensemos que será apenas com a elevação da produção de alimentos que o mundo conseguirá enfrentar a presente elevação de seus preços.
Novamente precisamos saber articular os diferentes campos das políticas públicas a serviço dos interesses de todos e todas. Precisamos entender que o alimento, muito mais do que uma simples mercadoria é um direito fundamental e primeiro de todo ser humano. Não é nos mercados especulativos, nas bolsas de commodities, cujo objetivo único está na realização de grandes lucros para alguns, o lugar adequado para a definição de seu destino.
O Brasil tem alcançado nos últimos anos progressos que antes não eram imagináveis no enfrentamento da calamidade da fome, da miséria e da desigualdade. Isto nos faz referência para todo o mundo. É a primeira vez que o país alia crescimento econômico com redução da desigualdade. Pesquisas nacionais, com metodologias rigorosas, comprovam esses avanços, como é o caso da redução da desnutrição infantil. Porém, tais fatos não nos autorizam à conclusão de que o problema da fome está resolvido no país. Para certos porta-vozes das elites, que não querem abrir mão dos privilégios dos mais abastados, essa é a interpretação fácil que aponta como desperdício os investimentos atualmente realizados junto à população mais desprovida.
Como nos mostrou Josué de Castro, a fome não pode ser apenas avaliada por sua manifestação biológica, ou por medidas de peso e altura. A fome, na sua versão contemporânea, se esconde atrás de estratégias de busca do provimento de energia, mas absolutamente carente de outros componentes nutricionais indispensáveis para uma vida saudável. É a fome oculta que nos ensinou Josué. De fato, a fome em seu strictu sensu pode ser até aplacada pelo alimento colhido no lixo ou adquirido por ganho proveniente de trabalho degradante, mas na sua essência ela não estará vencida.
A fome será vencida pelo reconhecimento, efetivo, do direito humano à alimentação, acima de qualquer outra prioridade. Isto se faz e garante por meio de políticas públicas sob a responsabilidade de toda a sociedade, mas em particular do Estado.
Chico Science, poeta do mangue, que foi um dos ícones da atuais gerações, falou em uma de suas músicas: "... tem que saber p'ra onde corre o rio, tem que saber seguir o leito, tem que estar informado, tem que saber quem é Josué de Castro,...rapaz!". Josué de Castro, patrono do Consea, tem muito o que nos dizer nesse caminho.
*Diretor do Ibase
Publicado em 5/9/2008.
1 Prefácio da última edição de Geografia da Fome, Rio de Janeiro, 2003
2 Geografia da Fome, Rio de Janeiro, 2003
Fonte: Ibase – 5/9/08.
Um comentário:
Tema:'Como vencer a pobreza e a desigualdade'
Por Clarice Zeitel Vianna Silva
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - RJ
'PÁTRIA MADRASTA VIL'
Onde já se viu tanto excesso de falta? Abundância de inexistência... Exagero de escassez... Contraditórios?? Então aí está! O novo nome do nosso país! Não pode haver sinônimo melhor para BRASIL. Porque o Brasil nada mais é do que o excesso de falta de caráter, a abundância de inexistência de solidariedade, o exagero de escassez de responsabilidade. O Brasil nada mais é do que uma combinação mal engendrada - e friamente sistematizada - de contradições. Há quem diga que 'dos filhos deste solo és mãe gentil.', mas eu digo que não é gentil e, muito menos, mãe. Pela definição que eu conheço de MÃE, o Brasil está mais para madrasta vil. A minha mãe não 'tapa o sol com a peneira'. Não me daria, por exemplo, um lugar na universidade sem ter-me dado uma bela formação básica. E mesmo há 200 anos atrás não me aboliria da escravidão se soubesse que me restaria a liberdade apenas para morrer de fome. Porque a minha mãe não iria querer me enganar, iludir. Ela me daria um verdadeiro PACote que fosse efetivo na resolução do problema, e que contivesse educação + liberdade + igualdade. Ela sabe que de nada me adianta ter educação pela metade, ou tê-la aprisionada pela falta de oportunidade, pela falta de escolha, acorrentada pela minha voz-nada-ativa. A minha mãe sabe que eu só vou crescer se a minha educação gerar liberdade e esta, por fim, igualdade. Uma segue a outra... Sem nenhuma contradição! É disso que o Brasil precisa: mudanças estruturais, revolucionárias, que quebrem esse sistema-esquema social montado; mudanças que não sejam hipócritas, mudanças que transformem! A mudança que nada muda é só mais uma contradição. Os governantes (às vezes) dão uns peixinhos, mas não ensinam a pescar. E a educação libertadora entra aí. O povo está tão paralisado pela ignorância que não sabe a que tem direito. Não aprendeu o que é ser cidadão.. Porém, ainda nos falta um fator fundamental para o alcance da igualdade: nossa participação efetiva; as mudanças dentro do corpo burocrático do Estado não modificam a estrutura. As classes média e alta - tão confortavelmente situadas na pirâmide social - terão que fazer mais do que reclamar (o que só serve mesmo para aliviar nossa culpa)... Mas estão elas preparadas para isso? Eu acredito profundamente que só uma revolução estrutural, feita de dentro pra fora e que não exclua nada nem ninguém de seus efeitos, possa acabar com a pobreza e desigualdade no Brasil. Afinal, de que serve um governo que não administra? De que serve uma mãe que não afaga? E, finalmente, de que serve um Homem que não se posiciona? Talvez o sentido de nossa própria existência esteja ligado, justamente, a um posicionamento perante o mundo como um todo. Sem egoísmo. Cada um por todos... Algumas perguntas, quando auto-indagadas, se tornam elucidativas. Pergunte-se: quero ser pobre no Brasil? Filho de uma mãe gentil ou de uma madrasta vil? Ser tratado como cidadão ou excluído? Como gente... Ou como bicho?
Premiada pela UNESCO, Clarice Zeitel, de 26 anos, estudante que termina faculdade de direito da UFRJ em julho, concorreu com outros 50 mil estudantes universitários. Ela acaba de voltar de Paris, onde recebeu um prêmio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) por uma redação sobre 'Como vencer a pobreza e a desigualdade'.
A redação de Clarice intitulada `Pátria Madrasta Vil´ foi incluída num livro, com outros cem textos selecionados no concurso. A publicação está disponível no site da Biblioteca Virtual da Unesco..
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