29.8.06

Tv digital brasileira - do sonho ao ralo

Mauro Oliveira*

“Se foi pra desfazer por que é que fez?”
Vinícius de Morais

O que levaria um governo, nariz empinado, esperança de um novo tempo, a ter a ousadia de convocar a inteligência nacional para definir um modelo de TV digital que atendesse aos interesses sociais e econômicos do país para depois jogar todo o esforço pelo ralo sem mais (nem menos) justificativas?
O Brasil estaria muito próximo de definir-se por um padrão, a ser adotado de forma integral, desprezando o esforço acadêmico e a competência científica nacionais. Fala-se que, em 10 de março, o presidente Lula anunciará a escolha integral de um dos padrões internacionais para a TV digital brasileira, em detrimento de um modelo híbrido, o único que contemplaria os interesses da nação.
Os tucanos deixaram aos petistas a decisão sobre o futuro da TV digital brasileira. No lugar da simples escolha de um dos padrões existentes (americano, europeu e japonês), o atual governo teve a visão de instituir o SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital), um consórcio de pesquisa comissionado para o estudo e desenvolvimento de um modelo que atendesse aos interesses sociais, tecnológicos, culturais e econômicos da nação.
O interesse social estaria contemplado por um modelo que privilegiasse a interatividade, permitindo o uso de serviços digitais, possivelmente a Internet, promovendo ação efetiva de inclusão digital sem precedentes. O econômico vai desde a independência de um padrão e seus royalties associados à possibilidade de um modelo exportável de TV digital interativa, capaz de interessar grandes mercados emergentes com condições geográfico-sociais semelhantes às do Brasil. O tecnológico estaria na valorização da competência nacional, dando-lhe chance de se consolidar, por exemplo, no campo do software (midlleware e aplicativos). E o cultural no estímulo à produção de conteúdo pela criação de um mercado próprio.
Como dizem os professores Luiz Fernando Gomes Soares, da PUC-Rio, e Guido Lemos, da UFPB, em carta endereçada aos ministros responsáveis pela definição: “enganam-se aqueles que pensam que a adoção de um padrão estrangeiro não afetará a produção de conteúdos”.
Ao conduzirmos o SBTVD, durante quinze meses, adotamos a estratégia de manter aberto um amplo leque de alternativas, mesmo a de que o modelo brasileiro de TV digital viesse a convergir para uma das tecnologias já consolidadas, se tal atendesse aos nossos interesses. O que jamais contemplamos foi a possibilidade de adotar de forma dependente e subalterna a integralidade de qualquer desses padrões. Preservar um espaço para a contribuição tecnológica nacional e para, quando menos, a adaptação da tecnologia aos nossos interesses e necessidades, sempre foi tido como um parti pris lógico irrevogável.
O SBTVD, ao contrário do Sivam, decidido à revelia da inteligência nacional, é um sucesso de planejamento e implementação que seduziu a academia de Norte a Sul do país de Monteiro Lobato. Foram envolvidos mais de 1.500 pesquisadores e 80 instituições de pesquisa e desenvolvimento que laboraram por uma solução para a TV digital brasileira, sem xenofobia, mas com competência, orgulho e soberania.
Tal solução poderia envolver os sub-padrões internacionais estabelecidos, o que é próprio da tecnologia globalizada, a exemplo do que ocorre com os aviões da Embraer que se valem de turbinas, parafusos e o que mais seja preciso, fabricados alhures, sem que percam sua decisiva nacionalização. No mundo contemporâneo, o mercado das comunicações é tão ou mais importante do que o da aviação, assim como é o da tecnologia da informação e da comunicação.
O advento da TV digital é o que se chama de uma janela de oportunidade. Na lógica da sociedade do conhecimento, tão ou mais importante que o produto é a competência tecnológica que se adquire ao desenvolvê-lo. Podemos aqui repetir histórias de sucesso como as da Embraer, Petrobras e Embrapa, ou repetir erros crassos do passado, como quando sob altas pressões, baixos golpes e pesados lobbies internacionais adquirimos o Sivam que nossos técnicos e cientistas poderiam ter desenvolvido.
Que pressões e lobbies, todavia mais surdos, agora nos acometem? Que interesses impedem o governo de promover um amplo debate na sociedade, em assunto que diz tão de perto à vida de tantos? Que pressa o açoda, quando nenhum fato novo nos pressiona?
O seu Zé do açougue, a dona Maria da bodega e o seu Raimundo vigia podem não entender muito de tecnologia, política etc. Mas que ninguém duvide! Seu Zé, dona Maria e seu Raimundo, da mesma origem humilde de nosso presidente, que entendem muito bem a importância de uma Petrobrás, de uma Embraer, de uma Embrapa, entenderão o ralo ao qual poderá ser jogada uma oportunidade histórica, caso o governo Lula decida pela adoção integral de um dos padrões internacionais de TV Digital.
Já que os políticos ou não têm conhecimento de causa ou por ela não demonstraram o interesse devido, espera-se da academia, esta que apesar de prestigiada no SBTVD manteve-se calada até agora, exceto em raros momentos, soltar logo os “cachorros” para que não nos exponhamos, em 10 de março próximo ou em qualquer outra data, à advertência do poeta: “se foi pra desfazer por que é que fez?”
*Doutor em informática, ex-secretário nacional de Telecomunicações (até setembro/2005).

publicado em Nova-e e Ibase, dentre outras publicações, em março de 2006.

Um comentário:

Jean Scharlau disse...

Aí está o quarto poder (leia-se Globo e seu empregado Hélio C). Ou Lula negociava com ester poder ou lhe declarav a guerra. E aí?