22.11.07

Quem quer doutrinar quem?

Hoje estou sem inspiração e por isso resolvi me dedicar ao “control C”, “control V”.
Abaixo mais um texto brilhante da professora Adriana Facina! É exemplar do tratamento que a grande mídia oferece aos assuntos sérios. Foi publicado no blog Fazendo Média (linkado no menu lateral), blog este de ótima qualidade e que visito com freqüência. Clique aqui para ler o texto na publicação original.



Que história é essa?

Não digas tão exatamente teu nome. Para quê?
Ao fazê-lo, estarás apenas nomeando um outro.
E para que exprimir tão alto a tua opinião? Esquece-a. Qual era mesmo?
Não te lembres de uma coisa por mais tempo do que ela própria dura.
Bertolt Brecht (trecho da peça "Um homem é um homem")

Quando Brecht escreveu o texto acima, em 1925, sintetizou, antes do tempo, a essência da visão da história sob o pensamento único. Nos anos 1990, quando o neoliberalismo se impôs vitorioso sobre os escombros de um capitalismo que se queria humanizado e sobre as ruínas do “socialismo real”, seus arautos defenderam a idéia de que, finda a Guerra Fria, as disputas ideológicas que deram sentido à história do século XX teriam se esvaziado. Assim, numa leitura muito particular de Hegel, o teórico conservador Francis Fukuyama anunciou o fim da história, associado ao triunfo do capitalismo liberal. Livre de ameaças totalitárias, a humanidade poderia caminhar tranqüila nas sendas do progresso, liberta do peso do passado e sem necessidade de projetar um futuro distinto do presente.
Mais de uma década se passou desde a divulgação dessas idéias. A ampliação da desigualdade social, o ressurgimento de movimentos fascistas em todo o mundo, a destruição do emprego e das redes de bem estar social, muitas crises econômicas e o recrudescimento do militarismo imperialista explicitaram a falência do modelo neoliberal em garantir, via mercado auto-regulado, a felicidade humana. Como resposta, o surgimento de movimentos antiglobalização, o crescimento de movimentos sociais com bandeiras anticapitalistas, tentativas de reorganização da classe trabalhadora em tempos de precarização do trabalho, eleição de governos populares na América Latina, ressurgimento de movimentos nacionalistas de caráter antiimperialista. Além disso, um sentimento anti-estadunidense amplamente difundido no mundo que, ainda que de forma um pouco simplista, acerta ao associar sofrimento e miséria de larga parcela da população mundial às políticas imperialistas empreendidas por sucessivos governos dos EUA.
Frente à dificuldade em, no meio desse cenário, seguir sustentando a idéia de que a história acabou, novos rearranjos devem ser tentados. Numa mistura monstruosa entre relativismo pós-moderno e positivismo oitocentista, as viúvas da tese do fim da história agora apontam suas armas midiáticas de grosso calibre contra o pensamento histórico crítico em nome da defesa de uma suposta imparcialidade na abordagem dos processos (que eles preferem chamar, como os positivistas do século XIX, de fatos) históricos. A narrativa histórica deveria ser formada de versões equivalentes sobre os fatos (relativismo pós-moderno), o que garantiria a imparcialidade do historiador diante dos mesmos (positivismo do século XIX).
Desde pelo menos o movimento francês da Escola dos Annales, iniciado nos anos 1920, sem falar do marxismo e, entre nós, de autores como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, o pensamento historiográfico contemporâneo refutou a idéia da neutralidade diante dos processos históricos. A subjetividade, o pertencimento de classe e vários outros elementos são partes constitutivas da análise histórica. Se o historiador deixa claro o lugar de onde fala, tanto melhor para seus leitores, que poderão se posicionar mais claramente diante de seus escritos. Mesmo a história que se diz neutra ou imparcial assume uma perspectiva parcial e, paradoxalmente, é ainda mais ideológica ao não explicitar isso e ao vestir o manto da objetividade científica absoluta.
Toda essa conversa é para a gente chegar na condenação dos livros de Mario Schmidt por O Globo, Veja e Época. Parece risível que um editor de jornalismo de uma empresa que é tão descaradamente parcial na veiculação da informação denuncie um livro didático de História por ser ideológico. Ali Kamel, além de não ser historiador, é autor de um livro que diz não haver racismo no Brasil (sobre os dados da desigualdade racial no Brasil ver reportagem publicada na Folha de S. Paulo nesta semana com os resultados da pesquisa coordenada pelo pesquisador Marcelo Paixão). Sob sua direção, o Fantástico vem apresentando um quadro, com os jornalistas Pedro Bial e Eduardo Bueno, que trata da história do Brasil como uma sucessão de fatos pitorescos e que apresenta erros bizarros, como a falsa informação de que a Inconfidência Mineira teria sido influenciada pela Revolução Francesa, sendo que ela ocorreu meses antes desta.
Sobre Veja, sem comentários. Panfleto ideológico de péssima qualidade, recentemente recebeu uma descompostura do respeitado jornalista Jon Lee Anderson, veterano de guerra da revista New Yorker sobre o mau jornalismo praticado pela revista quando da sua matéria sobre os 40 anos da morte de Che Guevara. Só a desfaçatez pode explicar como essa produtora de falsificações históricas se arroga de xerife de livros didáticos de História.
Vamos à revista Época. Quando do affair Mario Schmidt, fui entrevistada pelo repórter Nelito Fernandes sobre o livro e seu autor. Quase nada do que falei foi publicado, o que já era esperado. Mas o mais absurdo foi o seguinte: Nelito me fez, de modo, direto, três perguntas. A primeira: “Seu sobrenome se escreve com um c ou dois?”. Respondi: “Um c só”. Segunda: “Você é professora da UFRJ?”. Eu disse: “Não, da UFF”. Terceira: “Você foi aluna do Mario?”. Neguei: “Não, nunca fui sua aluna”. Pois na matéria que saiu na revista eu virei Adriana Faccina com dois cs, professora da UFRJ e ex-aluna de Mario! Se os caras não conseguem ser fiéis nem às verdades mais prosaicas, que dirá quando os temas se complexificam. Pareceu claro a mim que Nelito já tinha uma missão: condenar o livro e seu autor e que minhas informações eram irrelevantes, só serviam para ele mostrar que tinha ido às fontes e não escrito um panfleto saído de sua cabeça ou da pena dos seus editores.
Todos esses veículos, e mais a televisão, atingem milhões de pessoas e estão concentrados em poucas mãos, divulgando aspectos parciais da verdade, quando não mentiras e falsificações deslavadas sem nenhum controle, produzidas sempre do ponto de vista dos vencedores. Aí sim estamos falando de doutrinação muito poderosa, porque diária e cotidiana. Imaginar que dois tempos semanais de aula de história e a leitura de livros didáticos podem fazer frente a isso é uma aberração sem tamanho.
Ao contrário do que dizem seus detratores, os livros de Mario Schmidt dialogam com ampla bibliografia histórica atualizada, trazem documentos históricos importantes e fontes iconográficas excelentes. É um material de ótima qualidade e que não deve ser recolhido de bibliotecas de escolas, a não ser que estejamos falando de censura ideológica, pois se trata de uma obra que se propõe a ser crítica. E é isso que incomoda aqueles que acham que educação não deve ser voltada para estimular o educando a pensar. Como todo livro didático, possui limitações e não é perfeito. Cabe ao professor, em sala de aula, complementar o trabalho com outras linguagens, reflexões e informações.
O pano de fundo dessa história toda diz respeito ao próprio papel da educação no mundo de hoje. Para quê queremos educar nossos filhos? Queremos criar indivíduos conformados com esse mundo que não é bom para ninguém, com exceção dos poderosos, ou desejamos formar seres pensantes, capazes de construir um mundo novo?

Sabemos que a desesperança e a falta de perspectivas de futuro geram consumismo, autodestruição, indiferença em relação ao sofrimento alheio. O conformismo é alimento para comportamentos violentos, para abuso de drogas, para uma existência preocupada somente em predar o presente, extraindo dele cada emoção imediata possível, tentativas de preencher vazios infindáveis.
Livros didáticos críticos são parte de uma concepção de educação que visa não doutrinar os educandos, pois isso os meios de comunicação e o mercado já fazem. Mas sim despertar o senso crítico, ensinar a pensar, a investigar o porquê das coisas. E hoje a escola ainda é um dos poucos espaços de resistência onde isso é possível. A História como disciplina incomoda muito aos poderosos porque ela mostra como nosso mundo chegou ao que é hoje. E se as coisas não foram sempre desse jeito, significa que elas podem ser mudadas. Estamos longe do fim da História.
Entendo a preocupações dos pais com o futuro profissional de seus filhos, e a qualidade do que é ensinado nas escolas e nos livros didáticos é parte disso. Mas não podemos nos deixar chantagear por aqueles que são responsáveis por sentirmos tanta insegurança pelo mundo que nossos filhos vão encontrar pela frente. O mundo que eles estão construindo não é o que queremos para quem amamos. Aqueles que hoje atacam a liberdade de idéias e o espírito crítico são os mesmos que destroem o meio ambiente, aprofundam a desigualdade que gera violência, que defendem um sistema econômico que não garante direitos básicos como emprego, saúde e educação ao seres humanos. Está nas mãos dos jovens de hoje mudarem isso. Se os livros didáticos, os professores e a escola servirem para que sua autoestima como sujeitos históricos ativos seja estimulada, teremos não o fim, mas começo de uma nova história.

P.S.: Felipe Viana, esse texto é para você.

Adriana Facina é antropóloga, professora do Departamento de História da UFF, membro do Observatório da Indústria Cultural e autora dos livros Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004) e Literatura e sociedade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004).

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